Corações partidos de uma alma sem futuro

Postado por Luan Henrique | | Posted On quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013 at 19:56

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  Era uma manhã de Outono em Curitiba, eu devia ter meus 7 ou 8 anos na época e vivíamos em um barraco caindo aos pedaços na beira de uma valeta em um dos bairros mais pobres e violentos da cidade. Minha mãe, Letícia, saia todo dia muito cedo de casa e voltava muito tarde, apenas para gritar comigo ou para ser surrada pelo meu pai, que até era um cara legal, sabia que era corno e lidava com isso bebendo e espancando as nádegas de mamãe e, muito raramente, a minha.

  Certo dia eu não estava conseguindo dormir e pedi para que meu pai lesse um pouco para mim na cama, ele não estava completamente bêbado ainda, mas estava trabalhando duro nisso.
- Nessa escola de merda não ensinaram você a ler ainda não? Você já tem quantos anos? 15, 16?
- Eu sei ler papai, mas algumas palavras eu não conheço – tirei meu livrinho infantil que trazia dentro de minha jaqueta e abri na página marcada que eu tinha tentado ler anteriormente.
- O que significa “vulgar” papai?
- Porra Ademilson, vulgar é a sua mãe, aquela vagabunda.

  Depois desse dia nunca mais pedi para ele ler nada pra mim, mas meu aniversário estava chegando e eu estava ansioso para saber se nesse ano eu poderia pelo menos almoçar. Os dias se passaram muito lentamente naquela semana, minha mãe chegava em casa com o batom borrado e meu pai desmaiava no sofá da sala com a tv ligada. Sábado parecia que jamais iria chegar, mas para a minha surpresa, ele chegou, trazendo mais experiência e maturidade para a minha cabeça.

  Meu pai tinha saído cedo de casa, eu estava sozinho quando acordei. Comi um pão seco e fiquei sentado perto da janela observando a chuva que caia lá fora. Mais ou menos umas 11 horas da manhã ele abriu a porta, ensopado e gritando palavrões e amaldiçoando Deus e o mundo.
- Toma aqui moleque, feliz aniversário e blábláblá, agora vá pro seu quarto que eu quero ficar sozinho.

  Era um embrulho vagabundo, algum objeto oval que me deixou com uma mistura de ansiedade e a mais pura alegria. “Pelo menos ele lembrou”, foi o que veio na minha cabeça. Comecei a abrir e descobri o objeto misterioso: Era um kinder ovo.

  Ele deve ter gasto o salário de todo um mês nisso, pensei com os olhos cheios de lágrimas. Seria a primeira vez que eu iria experimentar aquele doce que todos falavam tão bem. “Com surpresa”, dizia a embalagem. Comi uma metade com a maior satisfação do mundo, e guardei a outra metade para depois. Agora eu queria descobrir que surpresa era aquela dentro da cápsula laranjada.

  Abri com cuidado e olhei para o pequeno pedaço de papel que estava lá dentro. Estava enroladinho e parecia conter alguma tinta preta bem forte nele, desenrolei e vi que só tinha uma única letra no meio de vários asteriscos:

**** *E** ****

  O que eu deveria fazer com aquilo? Tentei ver contra a luz, tentei passar os dedos nos asteriscos mas nada parecia mudar. Deixei ele de lado e continuei minha vida.
  Um ano se passou, e no meu próximo aniversário ganhei outro kinder ovo. Esse tinha sido um ano bom, meu pai passou a maior parte do tempo no seu novo emprego e eu ficava sozinho pela casa o dia inteiro, sonhando acordado ou inventando brinquedos novos utilizando pedaços de pau e cocôs endurecidos.

  A surpresa do meu novo kinder ovo foi a mesma do ano passado, mas agora era outra letra que aparecia:

**** **** *A**

  Isso estava ficando estranho, e todos os anos eu ganhava sempre a mesma coisa, e sempre a mesma coisa aparecia, e no final eu guardava os papéis em cima do meu guarda-roupas e esquecia daquilo. Poderia ser um grande segredo, mas eu perdia o interesse muito rápido nele.

M*** **** ****

  No meu aniversário de 16 anos resolvi pegar todos os pedaços de papel e ver se aquilo fazia algum sentido. Eu já estava mais maduro, tinha uma namoradinha e dificilmente apanhava do meu pai, eu estava muito mais forte do que ele, eu estava muito mais forte do que muita gente. Porra, eu era praticamente um monstro.

  E agora tenho 20 anos, escrevo esse texto diretamente da maravilhosa e receptiva Penitenciária Estadual de Piraquara II, onde pretendo usufruir de suas instalações por pelo menos mais uns 30 anos. A mensagem revelada nos kinder ovos durante todos esses anos dizia o seguinte:

MATE SEUS PAIS

  E foi exatamente o que eu fiz…

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